CARTA ABERTA AOS CRISTÃOS DO SÉCULO XXI
Por: Brennan
Manning
Adentramos o século XXI, e nunca houve outra
época na história cristã em que o nome de Jesus fosse mencionado com tanta
freqüência e o conteúdo de sua vida e de seu ensino tão freqüentemente
ignorado. A sedução de um discipulado fraudulento tem tornado fácil demais ser cristão.
Num clima de admiração mútua, as exigências radicais
do evangelho
dissolveram-se em antiácido verbal,
e a pregação
profética tornou-se
quase impossível. De modo geral, os cristãos americanos de hoje são alimentados
a colheradas
com o mingau
da religião popular.
O evangelho de Jesus Cristo não é historinha
de Pollyana
para os neutros — é faca
cortante, trovão implacável e terremoto convulsivo no espírito humano. A
Palavra deveria nos forçar a reavaliar o rumo inteiro de nossa vida. Porém, nas
palavras de Bonhoeffer, muitos cristãos "juntaram-se como abutres ao redor da
carcaça da graça barata, e ali beberam o veneno que assassinou o
seguir a Cristo".
Fosse o evangelho proclamado sem concessões, o
rol de cristãos de carteirinha neste país diminuiria. Em sua maior parte o televangelismo
distorce o evangelho. Não há referência à cruz exceto como relíquia teológica,
nenhum toque de clarim anunciando ao corpo de Cristo que estamos crucificados
para o mundo e o mundo crucificado para nós. Em meia hora o evangelista
eletrônico tem de converter você, curá-lo e garantir-lhe sucesso. Todos são
vencedores; ninguém perde seu negócio, fracassa no casamento ou vive na
pobreza. Se você é uma jovem atraente de dezenove anos e aceita Jesus, torna-se
miss
América; se você tem
problema com a bebida, vence o alcoolismo; se faz parte da Liga Nacional de
Futebol, é escalado automaticamente para a seleção.
Por mais incrível que possa parecer, a própria
Palavra tornou-se fonte de divisão e de justiça própria. Jesus disse que o
sinal mais evidente do discipulado seria nosso amor uns pelos outros. "Um novo mandamento
vos dou: que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós
uns aos outros vos ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se
vos amardes
uns aos outros" (Jo
13:34-35). Seu ensino não deixa dúvidas aqui. Seríamos conhecidos como seus
seguidores não por ser castos, celibatários, honestos, sóbrios ou
respeitáveis; não por ser freqüentadores de igreja, carregadores de Bíblia ou
cantadores de salmos. Antes, seríamos conhecidos como discípulos primariamente
por nosso profundo e delicado respeito uns pelos outros, por nosso amor cordial
impregnado de reverência pela dimensão sagrada da personalidade humana.
No entanto, num gesto arrogante de patifaria,
muitos pregadores hoje em dia decidiram que o padrão de discipulado de Jesus é
inadequado para os tempos modernos. O novo critério é ortodoxia doutrinária
aliada ao modo de interpretar a Bíblia. "Crença correta" é a nova
norma que determina o que vale um cristão. Nestes tempos perigosos não
hesitamos em dividir comunidade, igreja local e até mesmo denominações por
causa da forma de adoração, das canções que cantamos ou do método de
interpretar uma passagem bíblica.
Meus amigos em Cristo, a verdade simples é que
a igreja cristã está dividida por doutrina, história e conduta diária.
Percorremos um longo caminho desde o século I, quando os pagãos
exclamavam com maravilha
e assombro: "Veja como esses cristãos amam-se uns aos outros!". Privamos
o mundo do único testemunho que o Filho de Deus requereu durante a ceia de seu
amor. "Nossa presente desunião não tem como ser a vontade de Deus para
nós; é escândalo para anjos no céu e para seres humanos na terra".
Deixem-me, no entanto, dizer que ao longo
deste país há uma congregação aqui, uma comunidadezinha ali, testemunhas
isoladas no horizonte cujas vidas não fazem nenhum sentido se Jesus não
ressurgiu. Eles vêem o cristianismo não como ritual, mas como modo de vida. Sua
vida longe das câmeras são impressionantes. Eles fazem coisas que ninguém
jamais poderá saber com a mesma sinceridade com que fazem as coisas que as
pessoas podem ver. Eles arriscaram tudo na assinatura de Jesus e creem firmemente que viver sem risco é arriscar não viver.
Entristece-me
profundamente em
nossa cultura aquilo
que só
posso chamar de idolatria das Escrituras. Para muitos cristãos a Bíblia não é
uma seta apontando para Deus, mas o próprio Deus. Numa palavra: bibliolatria. Deus não tem como confinar-se entre as capas de um livro. Perco depressa a
paciência perto de gente que fala como se o mero escrutínio de suas páginas
pudesse revelar precisamente como Deus pensa e como ele quer.
Os quatro evangelhos são a chave para o
conhecimento de Jesus. Contudo, de modo recíproco, Jesus é a chave do
significado do evangelho — e da Bíblia como um todo. Em vez de permanecermos
satisfeitos com a letra crua, deveríamos passar para os mistérios mais
profundos disponíveis apenas por meio de um conhecimento íntimo e sentido da
pessoa de Jesus.
Com o risco de soar repetitivo, vou dizê-lo
novamente: tomamos fácil demais ser cristão. Os únicos requerimentos são a recitação
de um credo e a
freqüência a uma igreja local onde há pouca comunhão e comunidade nenhuma. O
cristianismo costumava ser negócio arriscado. Não é mais. O discipulado livre de custos produz paspalhos e personalidades melífluas que, na frase
contundente de Scott Peck, "pertencem a uma igreja na qual o nome de Jesus convive blasfemamente
com a corrida armamentista".
De meu ponto de vista, a necessidade mais
urgente da igreja é conhecer Jesus Cristo: viver e respirar as palavras do
apóstolo Paulo: "Tudo que quero é conhecer a Cristo e experimentar o poder de sua ressurreição pelo participar da comunhão de seu sofrimento
(cf. Fp 3:10-11). Você e eu somos chamados para ser pessoas à maneira de Jesus.
Nada mais importa. Nosso alvo é nos tornarmos como Cristo, ter sempre sua imagem
diante dos olhos. O discipulado é um apego completo a Jesus Cristo em seu presente estado de
ressurreição: "Olhando para Jesus, autor e consumador da fé" (Hb 12:2).
Devemos permanecer inteiramente focalizados em Cristo, sem buscar a realização
na lei, na afiliação à igreja, na piedade pessoal, no sucesso ministerial ou no
avanço profissional. "Cristo é tudo em todos" (Cl 3:11).
Paulo é modelo de dedicação irredutível a
Jesus. Ele teve a audácia de ostentar: "Nós temos a mente de Cristo"
(1 Co 2:16). A ostentação era validada por sua vida. Desde o momento da
conversão, a mente e o coração de Paulo ocuparam-se de Jesus Cristo (cf. Fl
3:21). Cristo era uma pessoa cuja voz Paulo podia reconhecer (cf. 2Col3:30),
que o fortalecia nos momentos de fraqueza (12:9), que o iluminava, mostrava-lhe
o significado das coisas e o consolava (1:4-5). Abatido pelas acusações
difamatórias de falsos apóstolos, Paulo admitiu visões e revelações do Senhor
Jesus (12:1). A pessoa de Jesus desvendou para ele o mistério da vida e da
morte (cf. Cl 3:3).
Na novela O sol é para todos, o velho
advogado Atticus Finch afirma: "Você nunca vai compreender um homem até
se sentir na pele dele e olhar o mundo através de seus olhos". Paulo
olhava o mundo tão sensivelmente através dos olhos de Jesus Cristo que Jesus
Cristo tornou-se o ego do apóstolo: "Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu,
mas Cristo vive em mim" (Gl 2:20).
Se o apóstolo retornasse à terra hoje, creio
que conclamaria toda a igreja a retornar à disciplina do segredo. Essa antiquíssima
prática da igreja
apostólica foi implementada para proteger o nome sagrado de Jesus Cristo da
zombaria e os mistérios da fé cristã de profanação. A igreja cristã evitava a
menção do batismo, da eucaristia, da morte e ressurreição de Cristo na presença
dos não-batizados.[1]
Por quê? Porque o testemunho mais persuasivo era o modo que se vivia,
não as palavras que se falavam.
S0ren Kierkegaard certa vez descreveu dois
tipos de cristãos: o primeiro engloba os que imitam Jesus Cristo; os segundos
são os que se satisfazem em falar dele. Eu dividiria a comunidade cristã nos
Estados Unidos entre gente pictórica e gente dramática. A
gente pictórica enxerga Jesus a uma
distância segura, da maneira que se olha na Galeria Nacional de Washington para
o quadro da última ceia pintado por Salvador Dali. A gente dramática não é
composta por meros espectadores; como a audiência envolvida diretamente na
tragédia grega Antígona, são participantes pessoais no drama da morte e
ressurreição de Jesus, mediante um morrer diário para o eu e um ressurgir para
novidade de vida em Cristo.
Proponho que o empreendimento cristão de edificar
o reino de Deus na terra
seja um negócio silencioso e oculto. As reivindicações públicas do cristianismo
perderam a credibilidade. As palavras de nossos lábios são contraditas por
nosso modo de vida.
O problema com a igreja não é o fato de que
algo esteja escondido, mas que muito pouco tem permanecido oculto. Que a igreja
viva no subterrâneo por algum tempo. Ao mesmo tempo que abraça a discrição,
eleve também os critérios para filiação. Somos a igreja. Apresentemos ao mundo
a imagem de uma comunidade de servos e preservemos a beleza do evangelho não
com um fervor gritante e defensivo, mas com uma vida interior intensa de oração
e adoração, serviço e conduta de vida que só possam ser explicados em Deus.
A adoração é o ápice da vida da igreja, fonte
de todo o ministério, da solidariedade compartilhada em comunidade que toma a
fidelidade a Jesus possível. A adoração, como expressão da disciplina do
segredo, não é para amadores em busca de entretenimento.
Ela é apenas para pequenos grupos de cristãos
claramente comprometidos que caracterizam uma comunhão intensa baseada em sua
lealdade comum e acentuada a Jesus; e sua expressão do significado dessa
lealdade e comunhão é comunicada para e na companhia uns dos outros em
adoração[...] A adoração como disciplina hermética não é para as ruas, para os cartazes,
para a mídia, para as massas. Não são por certo os cultos de amanhecer de
Páscoa no Hollywood Bowl, não os exercícios dominicais de religião civil no East
Room da Casa Branca, não a
religiosidade ou as cruzadas no Astrodome[...] Não é cristianismo de adesivo
de pára-choque e papel de carta. A
igreja[...] se tornará rigorosa nas estipulações para afiliação e
devota em sua prática de
disciplinas. Dará também sua propriedade em favor
dos necessitados.[2]
A disciplina do
segredo ajudará a igreja a libertar-se da religiosidade. Carregamos muita
bagagem religiosa do passado. Em diversas igrejas locais que visito, a
religiosidade empurrou Jesus para as margens da vida real e fez com que as
pessoas mergulhassem na preocupação com a própria salvação pessoal. Quando o
medo do pecado e da morte domina a consciência cristã, tornamo-nos
excessivamente introspectivos; tiramos os olhos de Jesus e perdemos qualquer
senso de responsabilidade ética para com a comunidade humana mais ampla. Muitas
pessoas têm confundido as estruturas da religião com a revelação e a fé. A
disciplina do segredo insiste que Jesus não é apenas o centro do evangelho, mas
de toda nossa vida cristã. Nossa fidelidade a ele e imitação de sua vida darão
credibilidade ao cristianismo.
O uso excessivo
esvaziou o sentido de grande parte do idioma cristão. Quando encontrar alguém
em meio a dor e desolação, não fale o idioma bíblico conhecido por você e
disponível para você: fique ao lado da pessoa ferida em sua solidão e
quebrantamento, chore e lamente com ela, e deixe que seu silêncio seja sua
compaixão.
Faço questão de
lembrar a cada seguidor de Jesus que o discipulado nada
mais é que estar pronto a obedecer a Cristo tão incondicionalmente quanto os
primeiros discípulos. Apenas quem crê é obediente, e apenas quem é obediente
crê. Jamais confunda sucesso ministerial, conhecimento bíblico ou domínio
conceituai cristão com santidade e discipulado autêntico.
Eles podem muito bem tratar-se de corrupções do discipulado se
sua vida não estiver escondida com Cristo, em Deus.
Jesus Cristo ofendeu a ordem política e
religiosa da Palestina. O cristão, também, acabará sendo motivo de ofensa, e se
não o fizer é mau sinal, significa que não está sendo muito cristão.
Nesta carta, caros irmãos e irmãs, procurei
compartilhar minhas percepções sobre a igreja e oferecer recomendações para uma
renovação com base nos escritos de Paulo. Neste momento da história da igreja,
creio que o retorno a disciplina do segredo é essencial para a revitalização e
a credibilidade da comunidade cristã. O evangelho de Jesus
Cristo não deve ser forçado sobre um mundo não inclinado a abraçá-lo. Para ser
direto, as pessoas estão cheias de nossos sermões. Elas querem uma fonte de
poder para sua vida. Podemos recomendá-la apenas tomando-a ativamente presente
em nós mesmos. Para o crescimento da igreja na próxima década, o princípio
operativo é: "menos é mais". Pouco antes de morrer, o líder marxista Lênin
disse: "Dê-me dez
homens como Francisco de Assis e eu dominarei o mundo".
Por favor, orem por este peregrino. Não me
coloco acima de vocês: sento-me ao seu lado.
Sob a
Misericórdia,
Brennan Manning
Nova Orleans, Louisiana
15 de janeiro de 1992
[2] Larry RASMUSSEN, "Worship in a World
Come-of-Age", em A Bonhoeffer Legacy: Essays in
Understanding, p. 278.
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