terça-feira, 16 de abril de 2013

CARTA ABERTA AOS CRISTÃOS DO SÉCULO XXI


CARTA ABERTA AOS CRISTÃOS DO SÉCULO XXI


Por: Brennan Manning

Adentramos o século XXI, e nunca houve outra época na história cristã em que o nome de Jesus fosse mencionado com tanta freqüência e o conteúdo de sua vida e de seu ensino tão freqüentemente ignorado. A sedução de um discipulado fraudulento tem tornado fácil demais ser cristão. Num clima de admiração mútua, as exigências radicais do evangelho dissolveram-se em antiácido verbal, e a pregação profética tornou-se quase impossível. De modo geral, os cristãos americanos de hoje são alimentados a colheradas com o mingau da religião popular.
O evangelho de Jesus Cristo não é historinha de Pollyana para os neutros — é faca cortante, trovão implacável e terremoto convulsivo no espírito humano. A Palavra deveria nos forçar a reavaliar o rumo inteiro de nossa vida. Porém, nas palavras de Bonhoeffer, muitos cristãos "juntaram-se como abutres ao redor da carcaça da graça barata, e ali beberam o veneno que assassinou o seguir a Cristo".
Fosse o evangelho proclamado sem concessões, o rol de cristãos de carteirinha neste país diminuiria. Em sua maior parte o televangelismo distorce o evangelho. Não há referência à cruz exceto como relíquia teológica, nenhum toque de clarim anunciando ao corpo de Cristo que estamos crucificados para o mundo e o mundo crucificado para nós. Em meia hora o evangelista eletrônico tem de converter você, curá-lo e garantir-lhe sucesso. Todos são vencedores; ninguém perde seu negócio, fracassa no casamento ou vive na pobreza. Se você é uma jovem atraente de dezenove anos e aceita Jesus, torna-se miss América; se você tem problema com a bebida, vence o alcoolismo; se faz parte da Liga Nacional de Futebol, é escalado automaticamente para a seleção.
Por mais incrível que possa parecer, a própria Palavra tornou-se fonte de divisão e de justiça própria. Jesus disse que o sinal mais evidente do discipulado seria nosso amor uns pelos outros. "Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros" (Jo 13:34-35). Seu ensino não deixa dúvidas aqui. Seríamos conhecidos como seus seguidores não por ser castos, celibatários, honestos, sóbrios ou respeitáveis; não por ser freqüentadores de igreja, carregadores de Bíblia ou cantadores de salmos. Antes, seríamos conhecidos como discípulos primariamente por nosso profundo e delicado respeito uns pelos outros, por nosso amor cordial impregnado de reverência pela dimensão sagrada da personalidade humana.
No entanto, num gesto arrogante de patifaria, muitos pregadores hoje em dia decidiram que o padrão de discipulado de Jesus é inadequado para os tempos modernos. O novo critério é ortodoxia doutrinária aliada ao modo de interpretar a Bíblia. "Crença correta" é a nova norma que determina o que vale um cristão. Nestes tempos perigosos não hesitamos em dividir comunidade, igreja local e até mesmo denominações por causa da forma de adoração, das canções que cantamos ou do método de interpretar uma passagem bíblica.
Meus amigos em Cristo, a verdade simples é que a igreja cristã está dividida por doutrina, história e conduta diária. Percorremos um longo caminho desde o século I, quando os pagãos exclamavam com maravilha e assombro: "Veja como esses cristãos amam-se uns aos outros!". Privamos o mundo do único testemunho que o Filho de Deus requereu durante a ceia de seu amor. "Nossa presente desunião não tem como ser a vontade de Deus para nós; é escândalo para anjos no céu e para seres humanos na terra".
Deixem-me, no entanto, dizer que ao longo deste país há uma congregação aqui, uma comunidadezinha ali, testemunhas isoladas no horizonte cujas vidas não fazem nenhum sentido se Jesus não ressurgiu. Eles vêem o cristianismo não como ritual, mas como modo de vida. Sua vida longe das câmeras são impressionantes. Eles fazem coisas que ninguém jamais poderá saber com a mesma sinceridade com que fazem as coisas que as pessoas podem ver. Eles arriscaram tudo na assinatura de Jesus e creem firmemente que viver sem risco é arriscar não viver.
Entristece-me profundamente em nossa cultura aquilo que só posso chamar de idolatria das Escrituras. Para muitos cristãos a Bíblia não é uma seta apontando para Deus, mas o próprio Deus. Numa palavra: bibliolatria. Deus não tem como confinar-se entre as capas de um livro. Perco depressa a paciência perto de gente que fala como se o mero escrutínio de suas páginas pudesse revelar precisamente como Deus pensa e como ele quer.
Os quatro evangelhos são a chave para o conhecimento de Jesus. Contudo, de modo recíproco, Jesus é a chave do significado do evangelho — e da Bíblia como um todo. Em vez de permanecermos satisfeitos com a letra crua, deveríamos passar para os mistérios mais profundos disponíveis apenas por meio de um conhecimento íntimo e sentido da pessoa de Jesus.
Com o risco de soar repetitivo, vou dizê-lo novamente: tomamos fácil demais ser cristão. Os únicos requerimentos são a recitação de um credo e a freqüência a uma igreja local onde há pouca comunhão e comunidade nenhuma. O cristianismo costumava ser negócio arriscado. Não é mais. O discipulado livre de custos produz paspalhos e personalidades melífluas que, na frase contundente de Scott Peck, "pertencem a uma igreja na qual o nome de Jesus convive blasfemamente com a corrida armamentista".
De meu ponto de vista, a necessidade mais urgente da igreja é conhecer Jesus Cristo: viver e respirar as palavras do apóstolo Paulo: "Tudo que quero é conhecer a Cristo e experimentar o poder de sua ressurreição pelo participar da comunhão de seu sofrimento (cf. Fp 3:10-11). Você e eu somos chamados para ser pessoas à maneira de Jesus. Nada mais importa. Nosso alvo é nos tornarmos como Cristo, ter sempre sua imagem diante dos olhos. O discipulado é um apego completo a Jesus Cristo em seu presente estado de ressurreição: "Olhando para Jesus, autor e consumador da fé" (Hb 12:2). Devemos permanecer inteiramente focalizados em Cristo, sem buscar a realização na lei, na afiliação à igreja, na piedade pessoal, no sucesso ministerial ou no avanço profissional. "Cristo é tudo em todos" (Cl 3:11).
Paulo é modelo de dedicação irredutível a Jesus. Ele teve a audácia de ostentar: "Nós temos a mente de Cristo" (1 Co 2:16). A ostentação era validada por sua vida. Desde o momento da conversão, a mente e o coração de Paulo ocuparam-se de Jesus Cristo (cf. Fl 3:21). Cristo era uma pessoa cuja voz Paulo podia reconhecer (cf. 2Col3:30), que o fortalecia nos momentos de fraqueza (12:9), que o iluminava, mostrava-lhe o significado das coisas e o consolava (1:4-5). Abatido pelas acusações difamatórias de falsos apóstolos, Paulo admitiu visões e revelações do Senhor Jesus (12:1). A pessoa de Jesus desvendou para ele o mistério da vida e da morte (cf. Cl 3:3).
Na novela O sol é para todos, o velho advogado Atticus Finch afirma: "Você nunca vai compreender um homem até se sentir na pele dele e olhar o mundo através de seus olhos". Paulo olhava o mundo tão sensivelmente através dos olhos de Jesus Cristo que Jesus Cristo tornou-se o ego do apóstolo: "Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim" (Gl 2:20).
Se o apóstolo retornasse à terra hoje, creio que conclamaria toda a igreja a retornar à disciplina do segredo. Essa antiquíssima prática da igreja apostólica foi implementada para proteger o nome sagrado de Jesus Cristo da zombaria e os mistérios da fé cristã de profanação. A igreja cristã evitava a menção do batismo, da eucaristia, da morte e ressurreição de Cristo na presença dos não-batizados.[1] Por quê? Porque o testemunho mais persuasivo era o modo que se vivia, não as palavras que se falavam.
S0ren Kierkegaard certa vez descreveu dois tipos de cristãos: o primeiro engloba os que imitam Jesus Cristo; os segundos são os que se satisfazem em falar dele. Eu dividiria a comunidade cristã nos Estados Unidos entre gente pictórica e gente dramática. A gente  pictórica enxerga Jesus a uma distância segura, da maneira que se olha na Galeria Nacional de Washington para o quadro da última ceia pintado por Salvador Dali. A gente dramática não é composta por meros espectadores; como a audiência envolvida diretamente na tragédia grega Antígona, são participantes pessoais no drama da morte e ressurreição de Jesus, mediante um morrer diário para o eu e um ressurgir para novidade de vida em Cristo.
Proponho que o empreendimento cristão de edificar o reino de Deus na terra seja um negócio silencioso e oculto. As reivindicações públicas do cristianismo perderam a credibilidade. As palavras de nossos lábios são contraditas por nosso modo de vida.
O problema com a igreja não é o fato de que algo esteja escondido, mas que muito pouco tem permanecido oculto. Que a igreja viva no subterrâneo por algum tempo. Ao mesmo tempo que abraça a discrição, eleve também os critérios para filiação. Somos a igreja. Apresentemos ao mundo a imagem de uma comunidade de servos e preservemos a beleza do evangelho não com um fervor gritante e defensivo, mas com uma vida interior intensa de oração e adoração, serviço e conduta de vida que só possam ser explicados em Deus.
A adoração é o ápice da vida da igreja, fonte de todo o ministério, da solidariedade compartilhada em comunidade que toma a fidelidade a Jesus possível. A adoração, como expressão da disciplina do segredo, não é para amadores em busca de entretenimento.

Ela é apenas para pequenos grupos de cristãos claramente comprometidos que caracterizam uma comunhão intensa baseada em sua lealdade comum e acentuada a Jesus; e sua expressão do significado dessa lealdade e comunhão é comunicada para e na companhia uns dos outros em adoração[...] A adoração como disciplina hermética não é para as ruas, para os cartazes, para a mídia, para as massas. Não são por certo os cultos de amanhecer de Páscoa no Hollywood Bowl, não os exercícios dominicais de religião civil no East Room da Casa Branca, não a religiosidade ou as cruzadas no Astrodome[...] Não é cristianismo de adesivo de pára-choque e papel de carta. A igreja[...] se tornará rigorosa nas estipulações para afiliação e devota em sua prática de disciplinas. Dará também sua propriedade em favor dos necessitados.[2]

A disciplina do segredo ajudará a igreja a libertar-se da religiosidade. Carregamos muita bagagem religiosa do passado. Em diversas igrejas locais que visito, a religiosidade empurrou Jesus para as margens da vida real e fez com que as pessoas mergulhassem na preocupação com a própria salvação pessoal. Quando o medo do pecado e da morte domina a consciência cristã, tornamo-nos excessivamente introspectivos; tiramos os olhos de Jesus e perdemos qualquer senso de responsabilidade ética para com a comunidade humana mais ampla. Muitas pessoas têm confundido as estruturas da religião com a revelação e a fé. A disciplina do segredo insiste que Jesus não é apenas o centro do evangelho, mas de toda nossa vida cristã. Nossa fidelidade a ele e imitação de sua vida darão credibilidade ao cristianismo.
O uso excessivo esvaziou o sentido de grande parte do idioma cristão. Quando encontrar alguém em meio a dor e desolação, não fale o idioma bíblico conhecido por você e disponível para você: fique ao lado da pessoa ferida em sua solidão e quebrantamento, chore e lamente com ela, e deixe que seu silêncio seja sua compaixão.
Faço questão de lembrar a cada seguidor de Jesus que o discipulado nada mais é que estar pronto a obedecer a Cristo tão incondicionalmente quanto os primeiros discípulos. Apenas quem crê é obediente, e apenas quem é obediente crê. Jamais confunda sucesso ministerial, conhecimento bíblico ou domínio conceituai cristão com santidade e discipulado autêntico. Eles podem muito bem tratar-se de corrupções do discipulado se sua vida não estiver escondida com Cristo, em Deus.
Jesus Cristo ofendeu a ordem política e religiosa da Palestina. O cristão, também, acabará sendo motivo de ofensa, e se não o fizer é mau sinal, significa que não está sendo muito cristão.
Nesta carta, caros irmãos e irmãs, procurei compartilhar minhas percepções sobre a igreja e oferecer recomendações para uma renovação com base nos escritos de Paulo. Neste momento da história da igreja, creio que o retorno a disciplina do segredo é essencial para a revitalização e a credibilidade da comunidade cristã. O evangelho de Jesus Cristo não deve ser forçado sobre um mundo não inclinado a abraçá-lo. Para ser direto, as pessoas estão cheias de nossos sermões. Elas querem uma fonte de poder para sua vida. Podemos recomendá-la apenas tomando-a ativamente presente em nós mesmos. Para o crescimento da igreja na próxima década, o princípio operativo é: "menos é mais". Pouco antes de morrer, o líder marxista Lênin disse: "Dê-me dez homens como Francisco de Assis e eu dominarei o mundo".
Por favor, orem por este peregrino. Não me coloco acima de vocês: sento-me ao seu lado.
Sob a Misericórdia,
Brennan Manning
Nova Orleans, Louisiana 15 de janeiro de 1992








Para um desenvolvimento completo da disciplina do segredo, cf. Geoffrey B. KELLY, Liberating Faith, p. 133s.
[2] Larry RASMUSSEN, "Worship in a World Come-of-Age", em A Bonhoeffer Legacy: Essays in Understanding, p. 278.

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