Os Duzentos e Sessenta Soldados
OS MÁRTIRES DO
COLISEU, A. J. O'Reilly, – CAPÍTULO Capítulo 16.
Enquanto o ímpio Valeriano estava pagando a
pena de seus crimes sob o chicote do vitorioso Sapor, rei da Pérsia, seu filho
Galieno, devasso e imprestável, dava continuidade ao reinado de tirania. Sem
afeição por seu pai, e sem interesse pelo Império, ele entregou-se aos mais
vergonhosos excessos e libertinagens.
Cinco usurpadores levantaram-se quase
simultaneamente para arrancar-lhe das mãos as rédeas do Império. Entre eles
estava Marciano, cujo perverso conselho levara Valeriano a hostilizar os
cristãos, e provocara a terrível retribuição do céu sobre o infortunado
imperador. O rival mais bem-sucedido de Galieno foi o soldado Cláudio; no governo
de Valeriano, ele passara de tribuno a comandante militar. Seu triunfo sobre os
godos tornou-o famoso; prodigalizaram-lhe louvores, erigiram estátuas em seu
nome, e ele tornou-se o ídolo do exército. A sua ambição acompanhou os passos
de sua fortuna; ele visava o comando supremo.
Cláudio era um homem astucioso, e lançou
mão de um estratagema para remover seu rival: escreveu os nomes de alguns dos
mais bravos e audaciosos oficiais do exército de Galieno, imitando
perfeitamente os caracteres e a caligrafia do imperador. O documento, que
pretendia alistar os nomes de quem o tirano tencionava matar, foi enviado por
um confidente ao campo de Galieno, que se achava sitiado pelo usurpador
Aureolo, em Milão. Ele foi recebido por uma das supostas vítimas, que reuniu os
demais à sua volta, e resolveram matar Galieno à noite. Quando escureceu, eles
deram um alarme falso, e os soldados foram chamados às armas. Na confusão, o
ignóbil imperador teve o corpo trespassado por um dardo, e um soldado
partiu-lhe a cabeça em duas partes, com a espada. Cláudio foi declarado
imperador por seu próprio exército, derrotou Aureolo, e veio a Roma para
mergulhar as mãos no sangue dos cristãos, e manchar o próprio nome com a
infâmia eterna.
Seu predecessor era demasiadamente destemperado para ser formidável. A crueldade, o derramamento de sangue e a imolação indiscriminada de vítimas inocentes não são as manchas encontradas na página da história que lhe menciona o nome. A sua impureza, intemperança, e visível tolerância das paixões brutais não lhe permitiram um momento de sobriedade para molestar os cristãos. Não obstante, as velhas leis de perseguição ainda estavam em vigor; havia juízes e governadores que usavam os terríveis decretos para satisfazer caprichos cruéis, e remover aqueles a quem consideravam detestáveis. Muitos martírios foram registrados nas províncias, enquanto em Roma a perseguição transcorria sem os horrores da matança. Os cristãos sofreram, mas não no Coliseu, nem na Petra Scelerata; não eram retalhados com chicotes nodosos, nem lançados em caldeirões de óleo fervente; não eram jogados no Tibre, nem decapitados no terceiro ou sétimo marco miliário.
Outra perseguição, uma perseguição mais
fatigante, os assolava. Eles eram lançados em prisões repugnantes, acorrentados
às galeras, ou forçados a trabalhar como os malfeitores nas florestas e nos
poços de areia, nas adjacências da cidade.
Assim, quando Cláudio entrou em Roma, já
tinha as vítimas preparadas para si. Seu curto e sangrento reinado começou com
uma das cenas mais cruéis e dolorosas encontradas nos contos de horror do
Coliseu.
Nos Atos dos nobres persas Mário, Marta e
seus filhos, apresentados nos Bolandistas lemos o seguinte:
"Ao mesmo tempo, Cláudio ordenou que se algum cristão fosse encontrado, na prisão ou livre, deveria ser punido sem julgamento. Quando esta lei foi promulgada, foram detidos na Via Salária duzentos e sessenta cristãos que, pelo nome de Cristo, foram condenados a trabalhar nos areeiros. Eles foram confinados no depósito de um oleiro, e depois levados ao anfiteatro para serem assassinados com flechas. Quando isto aconteceu, Mário e sua esposa Marta, juntamente com os filhos Audifax e Abacuque, passaram por grande aflição. Foram com o abençoado sacerdote João ao lugar onde eles haviam sido assassinados, e descobriram que tinham tocado fogo nos corpos. Começaram a removê-los e a sepultá-los com unguentos e especiarias, pois eram pessoas abastadas. A quantos puderam resgatar, enterraram numa cripta da Via Salariana, perto de Clivum Cucumeris. Sepultaram também um certo tribuno de Cláudio, chamado Blasto, e passaram muitos dias naquele lugar, com João, em jejum e oração".
A imaginação deve completar os detalhes
horrendos deste massacre. De acordo com os Atos, eles foram mortos a flechadas,
no Coliseu. A brutal soldadesca teve permissão para ocupar o lugar dos
espectadores, e atirar flechas em seus companheiros, forçados a entrar na
arena. Os arqueiros eram sempre os mais selvagens e violentos dentre os
militares; os executores públicos eram geralmente escolhidos nesta unidade.
Seus hábitos destemperados, sua aparência rude e bruta, e a sua falta de
humanidade, faziam-nos odiados pelos próprios pagãos. Eles eram instrumentos de
tortura nas mãos dos tiranos, para afligir os cristãos.
É doloroso contemplar estes bravos
soldados, desarmados, amarrados e silenciosos, esperando que os dardos fatais
os atravessassem. Em vão procuramos nos horrores dos naufrágios ou dos campos
de batalha por algo que pudéssemos comparar a esta cena. No primeiro, os
terrores são mais na antecipação que na realidade; a onda que engolfa sua
vítima esconde até mesmo a agonia da morte; um grito ocasional de uma vítima
debatendo-se rompe da tempestade; passado um momento, porém, tudo está acabado;
nenhum vestígio do naufrágio é visto: os vagalhões rolam, e o vento uiva, como
antes. Mas não assim na cena diante de nós, no Coliseu. Durante horas, os
suspiros dos moribundos misturam-se às risadas dos arqueiros. Um grupo está de
joelhos, mãos postas em oração; o zumbido das flechas voando é o seu dobre
fúnebre. Eles caem um a um. Dois amigos agarram-se num último abraço, e caem
juntos. O sangue de ambos mistura-se na mesma torrente. Nunca houve uma batalha
maior vencida pelo bravo. Sua coragem foi um desafio à morte; o espólio de sua
vitória, a maior riqueza já obtida.
Seriam esses pobres soldados estranhos a
todos os laços de afeto e paixões da alma? Certamente que não. A graça de
sofrer o martírio não significa o entorpecimento das sensibilidades humanas; as
suas afeições, seus medos e dores são sentidos tão fortemente quanto no coração
do soldado moribundo no campo de batalha. O lar, a família e os amigos eram
amados pelo mártir, mas o bálsamo sobrenatural da graça amortecia a pontada da
separação. Os pais idosos, o cônjuge amado, e os filhos queridos eram
alegremente entregues à Providência paternal, que abençoa com o mesmo afago com
que pune. Sem um murmúrio, sem um sinal de pesar, eles aguardam a coroa.
Dos horrores deste massacre, somos levados
em espírito a outra cena, brilhante e consoladora. Podemos imaginar os
espíritos dos soldados agonizantes elevando-se acima da abóbada grandiosa do
anfiteatro, ostentando coroas de louro imarcescível; suas almas livres flutuam
na alegria eternal. Quando a grande ruína é iluminada numa noite de verão por
milhares de pirilampos, como estrelas flutuantes no céu escuro, vêm-nos à mente
os anjos brilhantes enviados do céu para saudar aqueles soldados
martirizados.
É terrível o contraste entre a escuridão do
massacre no mundo material, e o júbilo que ele causa nas regiões da felicidade
verdadeira. Séculos de alegria imutável têm passado sobre aqueles heróis do
Coliseu; curta foi a sua batalha; eterna a sua recompensa. As aflições terrenas
são momentâneas; no além-túmulo, tornam-se manchas pequeninas no horizonte
longínquo do passado.
Os tormentos cruciantes do martírio, que a
princípio fazem estremecer, são transições instantâneas para a alegria eterna.
Não é, pois, com sentimentos de pena ou indignação, que afastamos desta cena de
sangue o nosso pensamento; levantamos o olhar de nossa pequenez para elevá-lo à
brilhante galáxia dos espíritos martirizados, nas regiões celestiais, e,
viajores que somos neste vale de lágrimas, desejamos juntar-nos a eles em seu
incessante hino de gratidão a Deus, por sua misericórdia e bondade.
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