Quando
Jesus estava em sua última caminhada rumo à Jerusalém, onde alguns dias mais
tarde ELE seria barbaramente torturado e assassinado, seus discípulos
seguiam-no de perto. Na estrada de Cafarnaum, começaram a discutir entre si
qual deles seria o mais importante.
Jesus,
porém, sabia o que se passava entre eles. Ao chegarem a Cafarnaum, Ele entrou
numa casa, fez os discípulos sentarem-se à sua volta, e pôs-se a ensinar-lhes
aquelas maravilhosas lições de humildade, que são a fundação de toda real
grandeza: . Irradiando amor e bondade no semblante, Ele indagou: "De que é
que vocês vinham tratando pelo caminho? Mas eles ficaram quietos".
Um raio de luz penetrou-lhes o coração,
enquanto as palavras de Jesus lhes penetravam os ouvidos, e um rubor foi o
reconhecimento de seu orgulho. Perto do Senhor havia uma bela criança - um
menininho de olhos brilhantes, de quatro ou cinco anos, com os cabelos dourados
caindo em cachos pelos ombros. Era o símbolo de tudo o é que belo e inocente.
Jesus chamou o menino, e imprimindo-lhe um beijo na testa, colocou-o diante dos
discípulos. Então, no doce tom de sua voz celeste, advertiu-os: "Em
verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças,
de modo algum entrareis no Reino dos céus".
Segundo a tradição, aquele menino era Inácio!
O garotinho abraçado por Cristo, e posto em sua inocência como modelo de tudo o
que é verdadeiramente grande, seria, nos anos vindouros, o bispo de Antioquia,
que foi devorado por bestas feras no Coliseu. Na verdade, nada se sabe da
infância e juventude de Inácio. Ele aparece nas páginas da história já como o
bispo de Antioquia, que nessa ocasião era uma das maiores cidades de Roma. A
circunstância acima descrita, embora mencionada por alguns escritores antigos
não possui confirmação histórica além da tradição. Não a tomamos como certa,
mas a apresentamos como uma introdução interessante aos Atos desse
grande mártir, que são, indubitavelmente, genuínos.
Inácio fora discípulo dos apóstolos Pedro e
João. Aprendera desses mestres competentes a sublime ciência do amor de Deus,
que fez dele um dos pilares e ornamentos da Igreja Primitiva. Depois dos apóstolos,
ele foi um dos homens mais notáveis da igreja. Após uma vida de mais de cinquenta
anos no episcopado de Antioquia, aprouve ao Todo-Poderoso chamá-lo a receber
sua coroa, por uma morte que deveria ser uma glória e um modelo para a Igreja.
A história de seus labores e virtudes não foi escrita, mas todas as particularidades
de sua morte foram registradas por testemunhas oculares e distribuídas em
várias igrejas; por isto seus Atos são os mais autênticos na história do
passado. O documento original, escrito em grego, acha-se preservado, e foi
publicado por Ruinart, em Paris, em 1690. A cena de seu martírio começa, de
acordo com a melhor autoridade, no ano 107 de Nosso Senhor. Trajano tinha nas
mãos o cetro dos césares. A tempestade que atacara a Igreja durante o reinado de
Domiciano fora acalmada. Relatam os historiadores que Trajano não amava
naturalmente o derramamento de sangue, e possuía um sentimento de humanidade
mais nobre que todos os imperadores que o precederam; era, no entanto, covarde
e escravo da opinião pública. Ele reprimia os próprios sentimentos para
favorecer o gosto brutal da plebe. A fim de ganhar popularidade, e sob o
pretexto de devoção aos deuses do Império, dava continuidade, de tempos em
tempos, às horríveis cenas de perseguição aos inofensivos cristãos. Inácio foi
uma de suas vítimas.
No oitavo ano de seu reinado, Trajano obteve
uma gloriosa vitória sobre Decébalo, o rei dos dácios, e anexou todo o seu
território ao Império Romano. No ano seguinte, assentou uma expedição contra os
partos e os armênios, aliados dos dácios. Chegando a Antioquia, ameaçou com as
mais severas punições todos aqueles que não sacrificavam aos deuses. O trabalho
e a pregação do venerável bispo desta cidade fora tão coroado de sucesso, que a
igreja florescera, e deixara de ser uma desprezível comunidade de uns poucos
indivíduos. Os pagãos viam com maus olhos a igreja crescendo à sua volta, e
aproveitaram a presença do imperador para pedir a sua extinção. "O
magnânimo campeão de Jesus Cristo" dizem os Atos de Inácio,
"receando que sua igreja se transformasse num cenário de massacre,
voluntariamente entregou-se em suas mãos, para que saciassem nele a sua fúria,
salvando assim o rebanho"'.
Ele foi imediatamente conduzido à presença do
imperador, e acusado de ser o cabeça e promotor do cristianismo na cidade.
Trajano, assumindo um tom arrogante e desdenhoso, dirigiu-se ao idoso bispo,
que se mantinha destemido perante ele, com estas palavras: - Quem és tu.
espírito ímpio e mau, que te atreve não somente a transgredir nossas ordens,
mas também a aplicar-te em carregar outros contigo para um fim miserável?
Meigamente, Inácio replicou: — Os espíritos
ímpios e perniciosos pertencem ao Inferno; eles nada têm a ver com o
cristianismo. Tu não podes chamar-me de ímpio e mau. quando levo no coração o
Deus verdadeiro. Os demônios tremem à simples presença dos servos do Deus a
quem adoramos. Eu tenho Jesus Cristo, o Senhor universal e celestial, e Rei dos
reis. Pelo seu poder, posso pisar todo o poder dos espíritos infernais.
— E quem é que possui e carrega seu Deus no
coração? — indagou Trajano.
— Todos os que creem no Senhor Jesus Cristo, e
o servem fielmente — foi a resposta daquele homem santo,
— Então não acreditas que também carregamos
dentro de nós os nossos deuses imortais? Não vês como eles nos favorecem com o
seu auxílio, e que grande e gloriosa vitória obtivemos sobre os nossos
inimigos?
—Vós estais enganados ao chamar de deuses
aquelas coisas que adorais — replicou Inácio, majestosamente. — Eles são
espíritos amaldiçoados; são os demônios. O Deus verdadeiro é apenas um, e foi
Ele quem criou os céus, a terra, e o mar, e tudo o que existe. E apenas um é
Jesus Cristo, o Filho primogênito do Deus Altíssimo, e a Ele eu oro
humildemente, para levar-me um dia a entrar no seu reino eterno.
— Quem é este Jesus Cristo? Não é Ele que foi
posto à morte por Pôncio Pilatos?
— É dele que eu falo — devolveu Inácio. — Ele,
que foi cravado na cruz, que aniquilou o meu pecado e o inventor do pecado, e
que, pela sua morte, pôs sob os pés daqueles que devotamente o levam no coração
todo o poder e malícia dos demônios.
— Então carregas dentro de ti este Jesus
crucificado? — Perguntou o imperador com um sorriso sarcástico.
— Assim é — afirmou Inácio. — Porque Ele nos
diz em sua santa Escritura: "Neles habitarei e andarei entre eles" (2
Co 6.16).
Por um momento, Trajano silenciou; pensamentos
conflitantes passaram-lhe pela mente. Estava ansioso para ouvir mais sobre a
religião dos cristãos, e tocado pela venerável aparência do servo de
Cristo, esteve para mandá-lo de volta ao seu povo com uma leve reprimenda, mas o
demônio do orgulho e da infidelidade levantou-se de um salto em seu coração, e
recordou-lhe que qualquer parcialidade para com a seita odiada seria um sinal
de fraqueza, uma perda de popularidade, e uma falta de lealdade aos deuses.
Ademais, a hesitação trairia o falso zelo de seu coração hipócrita, então,
sentando-se no trono, pronunciou a sentença contra o bispo de Antioquia:
— Ordenamos que Inácio, que afirma carregar
consigo o Jesus crucificado, seja levado em cadeias à grande cidade de Roma, e em
meio aos jogos do anfiteatro, como um prazeroso espetáculo ao povo romano, seja
dado em alimento ás bestas feras.
Quando Inácio ouviu sua sentença, caiu de
joelhos, e erguendo os braços ao céu, bradou num êxtase de alegria: - Oh.
Senhor, agradeço-te haver-me honrado com o mais precioso sinal da tua caridade,
e permitido que eu seja acorrentado por teu amor, como foi o apóstolo Paulo.
Ele permaneceu na mesma posição, os braços
levantados, os olhos fixos no céu; parecia haver tido um vislumbre daquela
inefável alegria que tão ardentemente desejava, e que logo desfrutaria. Foi
arrancado de seu devaneio pelas garras de um soldado que agarrou-lhe a frágil
mão, e a prendeu numa algema de criminoso. Seu crime foi "carregar dentro
de si Jesus crucificado". Ele não ofereceu resistência; cheio de alegria,
e orando por seu pobre rebanho, foi com os guardas para uma das celas da prisão
pública, onde aguardaria a partida para Roma.
Uma multidão agrupara-se no pátio do palácio
do governo, onde residia o imperador. Quando viram o venerável bispo algemado e
condenado à morte, um murmúrio de compaixão rompeu de cada lábio; havia muita
gente com lágrimas nos olhos, e no peito, um soluço reprimido. Eram cristãos
assistindo o seu amado bispo e pai ser arrastado para uma morte ignominiosa.
João Crisóstomo reflete com muita eloquência e
piedade sobre a razão de Inácio haver sido levado a Roma. Os mártires eram
geralmente mandados do tribunal para o cadafalso, e frequentemente tornavam-se
vítimas da ira impotente dos tiranos, e eram torturados e postos à morte na
própria corte de justiça. Trajano, porém, não era homem de disposição brutal, e
teria suspendido a perseguição contra os cristãos, não fosse o temor da
indignação popular. Quando ordenou que o velho bispo fosse levado a Roma e
exposto às feras perante dezenas de milhares de espectadores, foi para que o
Império inteiro pudesse louvar-lhe o zelo a serviço dos deuses, e o povo fosse
dissuadido de abraçar o cristianismo ao testemunhar a terrível sorte de seus
líderes. Entretanto, a divina Providencia, que pode tirar o bem das más ações
humanas, destinou essa jornada à edificação da Igreja e à salvação de inúmeras
almas. A constância, a piedade, e a eloquência do mártir em seu caminho para a
morte espalharam amplamente a sublime verdade da lei divina; ele despejou de
seu coração o fogo do amor que queimava dentro de si. Por onde ele passava, os
cristãos eram animados a um novo fervor, e muitos infiéis reconheceram no
respeitável bispo um reflexo da divindade do evangelho que ele pregava; negando
os falsos deuses do paganismo, tornaram-se filhos de Deus.
Inácio escreveu algumas cartas maravilhosas e
sublimes, solicitando aos cristãos de diferentes igrejas, especialmente de
Roma, que não lhe impedisse o martírio. Não que os cristãos fossem acostumados
a resgatar seus mártires das mãos dos tiranos por meio da força física, mas
Inácio bem sabia que eles possuíam armas mais poderosas que aquelas ostentadas
pelos exércitos nas batalhas; era a invisível, irresistível, e poderosa arma da
oração. Por ela, a ira dos tiranos era desviada, e a morte, frustrada. E Inácio
suplicou-lhes, com todo o fervor de seu coração, que o deixassem receber sua
coroa, e partir agora, em sua idade avançada, de uma enfadonha vida de
inquéritos judiciais para a bem-aventurança inefável do reino celestial. Os
cristãos consentiram, e o mártir ganhou sua coroa.
"Obtive do Deus Todo-poderoso",
escreveu ele em sua carta aos romanos, "o que há longo tempo venho
desejando: ir ver-vos, a vós, verdadeiros servos de Deus; e mais que isto,
espero alcançar sua misericórdia. Vou a vós algemado pelo amor de Jesus Cristo,
e algemado, espero chegar logo à vossa cidade para receber vosso abraço e
despedidas para o fim. As coisas começaram de modo auspicioso, e eu oro
sinceramente para que o Senhor remova todo impedimento ou atraso para o
glorioso fim que Ele parece me haver destinado. Mas, oh! Um medo terrível
arrefece-me a esperança, e vós, meus irmãos, sois a causa deste temor. Temo que
a vossa caridade se interponha entre mim e a minha coroa. Se vós desejásseis
impedir-me de receber a coroa do martírio, ser-vos-ia fácil fazê-lo. Mas que
tristeza e dor seria para mim essa bondade que me privaria da oportunidade de
sacrificar a minha vida - oportunidade que talvez eu nunca mais tivesse.
Permitindo que eu me vá sossegadamente ao meu fim, vós me ajudais naquilo que
me é mais caro. Se, todavia, em vossa caridade mal orientada, quisésseis salvar-me,
estaríeis-vos pondo como os mais cruéis inimigos no próprio portal do céu, e
arremessando-me de volta ao profundo e tempestuoso mar da vida, para ser
novamente atirado de um lado para outro em seus vagalhões de aflição.
Se me amais com verdadeira caridade,
permitir-me-eis subir ao altar do sacrifício, e vós mesmos reunir-vos-eis à
minha volta, entoando hinos de agradecimento ao Pai e a Jesus Cristo, por Ele
haver trazido, do leste para o oeste, de Esmirna a Roma, o bispo de Antioquia,
para fazê-lo confessor de seu grande nome, e sua vítima e seu holocausto. Oh!
Que feliz e abençoada a nossa sina, morrer para este mundo, e viver eternamente
em Deus!"
Noutro trecho de sua carta, ele usa estas
sublimes e tocantes palavras: "Deixai-mc ser o alimento das feras;
deixai-me ir, desse modo, a possessão de Deus. Sou o trigo de Jesus Cristo;
portanto devo ser quebrado e moído pelos dentes dos animais selvagens, para que
me torne seu pão imaculado e puro. Mago aqueles animais que logo serão meu
honrado sepulcro. Eu desejo e peço a Deus que eles não deixem nada de mim sobre
a terra, para que quando o meu espírito voar ao descanso eterno, o meu corpo
não seja uma inconveniência a ninguém. Então serei um verdadeiro discípulo de
Cristo, quando o mundo não puder ver mais nada de mim. Oh! Oro a Deus para que
assim seja; que eu possa ser consumido pelas bestas, e ser a vítima do seu
amor. É para solicitar o vosso auxílio que vos escrevo; não vos envio mandamentos
e preceitos, como Pedro e Paulo. Eles eram apóstolos; eu. um criminoso
miserável. Eles eram livres; eu, um escravo sem valor. Mas se eu sofrer o
martírio, serei livre. Agora que estou em cadeias por Jesus Cristo, reconheço a
futilidade das coisas mundanas, e aprendi a desprezá-las. Na viagem que fiz
desde a Síria, por terra e por mar, de noite e de dia, lutei e ainda luto com
dez leopardos ferozes, que me pressionam de todos os lados; são os dez soldados
que me mantêm algemado, e são meus guardas, que se tornam ainda piores e mais
cruéis, de acordo com os benefícios que recebem. No entanto, estas coisas são
para mim lições do mais sublime caráter; contudo, ainda não sou perfeito".
Veja Acta Sincera. Ruinart, vol. I, etc.)
Embora as cartas de Inácio despertem os mais
profundos sentimentos de devoção em nossa alma, trazem-nos aos olhos lágrimas
de compaixão. Não resta dúvida de que ele sofreu muito em sua longa e tediosa
jornada a Roma. Essa viagem deve ter levado mais de seis meses; a sua carta de Esmirna
data de 24 de agosto, e ele só foi martirizado em 20 de dezembro. Havendo
chegado à Grécia, cruzaram por terra a Macedônia, e navegaram novamente de
Epidamo à Itália. Cruzaram o mar Adriático, e foram rodeando o litoral sul da
Itália, para a costa oeste. Passando a cidade de Pozzuoli, Inácio ansiou
desembarcar lá, a fim de ir à Roma pela mesma estrada que Paulo percorrera
muitos anos antes. Mas levantou-se um vento favorável, e toda a viagem foi
feita pelo porto de Ostia. "Por um dia e uma noite", relatam os
cristãos que acompanharam Inácio e escreveram os Atos de seu martírio,
"tivemos este vento favorável. Para nós, decerto, era ele uma fonte de
grande tristeza, porque nos obrigava a mais depressa separar-nos da companhia
desse homem santo; para ele, no entanto, era motivo de grande alegria e
felicidade, porque o aproximava cada vez mais de seu fim almejado".
Chegaram à Ostia pouco antes do término dos
jogos anuais das atendas de janeiro. Estes jogos eram chamados sigillaria, e
eram os mais populares e concorridos. Os soldados, desejando chegar a Roma
antes de seu término, apressaram-se de Ostia, sem demora. Muitos dos cristãos
ouviram da chegada de Inácio, e foram encontrá-lo num lugar próximo de onde
agora se vê a imponente igreja de São Paulo. Ele foi saudado com uma mistura de
alegria e tristeza; alguns estavam maravilhados de ver o venerável pastor, e
receber a sua última bênção; outros choravam cm voz alta a tristeza de saber
que aquele grande homem ser-lhes-ia tirado por uma morte ignominiosa. Ele os
consolava com a alegria de seu próprio coração, e tornava a
implorar-lhes que não lhe evitassem o sacrifício com suas orações. Chegando
junto aos portões, caíram todos de joelhos e receberam a sua última bênção
solene.
Era a manhã do dia 20 de dezembro, de 107 d.C.
O sol já se erguera no céu, e despejava seu esplendor dourado sobre a cidade.
Os soldados e o velho bispo algemado adentraram aquele portão, através do qual
rolara a corrente do triunfo, e passaram muitos cativos do leste, para serem
massacrados no Capitólio, como o clímax glorioso do bárbaro triunfo.
Inácio desejara, desde a infância, ver a
grande metrópole do Império, e agora, ela se abria diante dele cm brilhante
esplendor. Era uma floresta de templos, túmulos e mansões, de um branco nevado
que parecia imperecível. Seus olhos, porém, estavam embaçados de lágrimas: seu
coração, moído de tristeza pela medonha escuridão que pairava sobre a cidade
poderosa. O esplendor e a magnificência de seus monumentos de mármore e ouro
mais se assemelhavam à decoração de uma tumba colossal. Com os braços cruzados
sobre o peito, ele orou para que o sol da justiça eternal um dia raiasse sobre
a cidade ignorante; que o sangue de tantos mártires derramado em seu solo
contribuísse para que na vida de outros santos se apresentassem os frutos
daquele sangue mais precioso vertido no Calvário.
Enquanto Inácio absorvia-se na oração, uma
breve curva na estrada trouxe-os para dentro da visão do poderoso Coliseu, do
deslumbrante vestígio do palácio dourado de Nero, que coroava o Palatino, e. à
distância, dos templos imponentes do Capitólio. Ao mesmo tempo, ouviram o troar
de alguns milhares de vozes, misturadas aos rugidos dos leões e das outras
feras. Um gladiador havia tombado no anfiteatro, e o populacho brutal ovacionava
o golpe fatal que o derrubara; os animais alarmavam-se no calabouço, e a terra
parecia tremer ao som do medonho coro de homens e bestas. Alguns minutos, e
Inácio chegou junto aos muros maciços do Coliseu. Mas adiantemo-nos a ele, e
tomemos assento numa das bancadas, para testemunhar a horrenda cena que se
seguirá.
Um simples olhar à volta do anfiteatro, e
seriam necessários alguns volumes para descrever tudo o que vemos. Imensidão e
arte, beleza e conforto, envolto com os raios de luz que trazem as primeiras
impressões - a mistura heterogênea de milhares de pessoas que ocupam cada
assento disponível, o multicolorido suavizado pelo toldo púrpura, enriquecido
pelas brilhantes armaduras dos soldados, e tudo o que o ouro e a prata podem
oferecer para deslumbramento dos olhos. O trono do imperador, numa plataforma
elevada, com o palio carmesim, é de notável suntuosidade. Ele não está
presente; encontra-se no acampamento. Mas o seu lugar está ocupado pelo
prefeito da cidade, um coitado imprestável, cujo deus é a vontade do seu
senhor, Próximo a ele estão os organizadores dos jogos, os irmãos Arvals, e as
virgens vestais; no primeiro círculo de bancadas, sentam-se todos os ricos e
grandes da cidade; a ordem acima deles acha-se vestida de belos
mantos brancos - são os cavaleiros. E então vem a imensa plataforma,
ou galeria do povo, onde se acham bancadas de madeira para as mulheres,
obrigadas, por lei. a estarem separadas, e modestamente à distância das cenas
de nudez e crueldade, que se passam na arena. Entre o povo. estão os enviados
de todos os territórios sob a águia romana, e em todas as variedades de cores e
costumes. Vê-se a raça robusta do norte gelado, de alvas feições e cabeleira
castanha, lado a lado com o árabe trigueiro c o etíope de cabelo encaracolado;
vêem-se os habitantes das profundezas do Egito, que bebem água das cataratas do
Nilo, ao lado dos sarmácias, que mitigam a sede com o sangue de seus cavalos.
"Quae tam seposita est, quae gens tam
barbara, caesar, ex qua spectator non
sit in urbe tua!"
— Marcial.
A confusão das vozes era como o murmúrio do
mar vigoroso. Parecia que a soberania do povo, banida do Fórum, buscara refúgio
no anfiteatro, e vindicava com gritos ensurdecedores a sua liberdade de
insultar e abusar. Em vão imaginamo-nos como pessoas do passado, para pintar as
cenas do Coliseu nos dias de sua glória! Nada possuímos no âmbito de nossa
experiência para comparar aos seus 100.000 espectadores tripudiando sobre
imagens de assassinato e sangue.
Percorrera a multidão o rumor de que um dos
líderes dos cristãos havia sido trazido da Síria, e condenado, por ordens do
imperador, a ser exposto às feras. Um frenesi selvagem vai passando de banco
para banco; o anfiteatro inteiro levanta-se e solta o grito coletivo, pedindo que
os cristãos sejam lançados aos leões. Os mais fortes aplausos de nossos maiores
teatros são apenas brisa, se comparados aos brados da raiva diabólica com que
os romanos pediam o extermínio dos seguidores do galileu crucificado. Como o
estrondo de uma avalanche alpina ecoando através dos montes, a vibração das
vozes humanas percorre os palácios e os monumentos de mármore da cidade que,
pelos desígnios da Providência, tornou-se um dos centros do cristianismo
antigo.
Repentinamente, a calma reina sobre as massas
vivas; todos os olhos fixados no portai» este. Os soldados conduzem à arena um
homem idoso e fraco, Os cachos prateados de seu cabelo foram branqueados pela
neve de mais de cem invernos; seu passo é firme; seu aspecto, mimado: nunca uma
vítima mais venerável foi conduzida através daquelas areias manchadas de
sangue. Ele é levado aos pés da plataforma imperial; o prefeito, tendo ouvido
de sua longa viagem desde o leste, e tocado por sua idade e aparência
respeitável, pareceu experimentar um sentimento de piedade, e dirigiu-se-lhe
nestas palavras: "Admiro-me de que ainda estejas vivo, após toda a fome e
o sofrimento que já suportaste; agora, consente ao menos em oferecer sacrifício
aos deuses, para que sejas livre da horrível morte que te ameaça, e salva-nos do
pesar de ter de condenar-te".
Inácio, empertigando-se com majestade, e
lançando ao representante do imperador um olhar de desdém, declarou:
— Com tuas palavras brandas, desejas
enganar-me e destruir-me. Sabe tu que esta vida mortal não tem atração para
mim; desejo ir a Jesus, que é o pão da imortalidade e a bebida da vida eterna.
Vivi inteiramente para Jesus, e a minha alma anela por Ele. Desprezo todos os
teus tormentos, c lanço aos teus pés a tua liberdade oferecida.
O prefeito, enraivecido com a linguagem ousada
do bispo, proferiu num tom arrogante: — Já que este velho é tão orgulhoso e
desdenhoso, deixai-o ser amarrado, e soltai dois leões para devorá-lo.
Inácio sorriu com alegria. Com um ato de ações
de graças no coração, e uma súplica muda por forças, dirigiu-se à assembléia
nestes termos: — Romanos que testemunhais a minha morte não penseis que sou
condenado por algum crime ou má ação. E-me permitido que eu vá a Deus, o que
anelo com insaciável desejo; sou trigo de Deus, e devo ser moído pelos dentes
das feras, a fim de tornar-me para Ele um pão branco e puro.1
Caiu, então, de joelhos, cruzou os braços
sobre o peito, e com os olhos erguidos ao céu, esperou calma e resignadamente
pelo momento que deveria libertá-lo dos problemas desta vida, e lançar-lhe a
alma em seu vôo para a eternidade. Mais um momento, e os pequenos portões das
passagens subterrâneas se abrem, e dois leões saltam para a arena.
Um silêncio palpável reina no anfiteatro. As
feras avançam... Basta. Deixemos que a imaginação complete os detalhes angustiantes.
0 mártir foi-se ao encontro de sua coroa. Podemos apenas transcrever as breves
e tocantes palavras de seus Atos-. "Sua oração foi ouvida: os leões
nada deixaram, a não ser os ossos mais sólidos de seu corpo".
A noite arrastou-se sobre a cidade. O Coliseu
está silencioso como uma tumba. À frouxa luz do luar. três homens caminham
rápida c silenciosamente à sombra das arcadas. Peno do centro da arena, num dos
lados da arquibancada do imperador, eles abaixam-se e desdobram um pano, onde
recolhem alguns ossos e uma porção de areia empapada de sangue. São os cristãos
Carus, Philom, e Agathopus, que acompanharam Inácio desde a Antioquia.
Próximo ao Coliseu, há uma casa freqüentada
pelos cristãos. É a casa de Clemente, membro da família de Flávio, e discípulo
de Pedro. Para esta casa os três amigos levam os restos mortais do querido
pastor, e prestam-lhe as homenagens fúnebres.
Embora Inácio seja o primeiro a ser mencionado
por sofrer no Coliseu, temos muitas razões para acreditar que houve muitos mais
antes dele, e depois também, expostos às bestas feras no mesmo lugar, e de quem
nenhum registro chegou até nós. Quando Inácio morreu, o Coliseu já tinha vinte
e sete anos de uso. Nesse tempo a perseguição aos cristãos assolava com fúria
ora maior, ora menor, e temos relatos de cristãos sendo lançados às feras
noutros anfiteatros do Império. Lemos a respeito de Tecla, exposta, a mando de
Nero, no anfiteatro de Licaònia. Supõe-se que ela tenha sido a primeira mulher
martirizada. Atílio Glabrione. que era cônsul sob Domiciano (93 d.C), teve de
lutar com um leão no anfiteatro p Albano. 0 servo de Deus bravamente matou o
leão, mas foi depois martirizado pelo tirano, em Roma.
Conquanto seja pequena a lista autenticada
desses que sofreram no Coliseu de Roma. temos várias razões para presumir que
milhares foram enviados ao céu, sem que tenhamos pies qualquer registro. O
último e terrível dia, que desvelará ao homem o passado e o futuro, encontrará
entre o inigualável coro dos mártires uma multidão de almas triunfantes, que
lutaram na arena do Coliseu, e cujos nomes não fomos capazes de honrar nas
páginas deste livro.
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